Transferências por interesse do Militar
O DILEMA DA TRANSFERÊNCIA POR INTERESSE DO MILITAR ESTADUAL: INTERESSE PÚBLICO x PRIVADO E ATENDIMENTO DE DIREITOS CONSTITUCIONAIS
Nos termos do artigo 3.º da LC Estadual 10.990/97, os integrantes da Brigada Militar têm status de categoria especial de servidores estaduais e, como tal, ganham não apenas um estatuto próprio, mas rigorismo disciplinar e maior entrave no que diz respeito às transferências.
Em um concurso de âmbito estadual, não raro o militar ingressante acaba classificado em cidade distante da sua morada e família por força de uma situação que não se compatibiliza: muitos vêm do interior, contudo, a maior concentração de crimes se dá na capital e região metropolitana.
A circunstância que aparenta ser de fácil manejo e provisória, revela-se, na prática, de difícil superação: o militar passa a enfrentar dificuldades com a escala, tem custo elevado para manter outra residência, a família sente falta e, muitas vezes, filhos, esposas e pais adoecem.
Com frequência policiais militares procuram o escritório objetivando uma medida judicial para garantir sua transferência, acreditando ter “direito líquido e certo”.
Todavia a transferência de militares através de ação judicial é considerada uma exceção e, na maior parte das vezes, está longe de ser um direito inequívoco.
O Tribunal de Justiça do Estado do RS, em regra, entende que a movimentação (denominação genérica) ou não do servidor é questão de mérito administrativo, sujeita a critérios de conveniência e oportunidade da Administração, não podendo o Judiciário adentrar em seu exame sob pena de invasão da competência administrativa, o que afronta o princípio da separação dos poderes.
Observe-se:
RECURSO INOMINADO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. POLICIAL MILITAR. TRANSFERÊNCIA DE PRAÇA. INTERESSE PARTICULAR DO SERVIDOR. ATO DISCRICIONÁRIO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE. INCONVENIÊNCIA COMPROVADA. A transferência dos Policiais Militares é ato discricionário da Administração Pública, que analisará caso a caso e decidirá de acordo com os critérios de conveniência e oportunidade, na forma estabelecida no Decreto nº 36.175/95, que regula a movimentação dos policiais. Na hipótese dos autos, impõe-se a rejeição do pleito do recorrente, porquanto restou demonstrada a inconveniência da remoção pretendida, em razão da grande carência de Policiais Militares no Regimento em que se encontra lotado. Sentença mantida por seus próprios fundamentos, nos termos do art. 46 da Lei nº 9.099/1995. RECURSO DESPROVIDO. UNÂNIME. (Recurso Cível Nº 71006504831, Segunda Turma Recursal da Fazenda Pública, Turmas Recursais, Relator: Rosane Ramos de Oliveira Michels, Julgado em 29/03/2017)
Sendo bastante simplista, significa dizer que a Administração pode, via de regra, lotar o seu servidor onde achar mais conveniente para atender ao interesse público.
A movimentação do servidor militar é regulada pelo Decreto nº 36.175/95 (Regulamento de Movimentação do Servidor Policial Militar da Brigada Militar) que traduz a prevalência da necessidade do serviço e o interesse público sobre o individual (artigo 2.º, parágrafo único).
Em se tratando de pedido de transferência por interesse do militar de uma OPM para outra (artigo 3.º, IV), a norma estabelece como condições: que exista vaga no OPM de solicitação, que o requerente sirva há, no mínimo, 2 anos no mesmo OPM, que exista conveniência para o serviço e que não tenha solicitado mais de 2 transferências antes de alcançar a estabilidade.
Há, contudo, exceção ao requisito da lotação há, pelo menos, 2 anos no mesmo OPM para os casos de inconveniência de permanência do servidor no seu local de lotação originário, permuta, por motivo de saúde própria ou de familiar ou para acompanhamento de cônjuge servidor estadual.
No transcorrer dos últimos anos, tem sido observado o Judiciário mais aberto às questões de transferência de militares, sobretudo por motivo de saúde própria ou de dependente, embora não se possa considerar que a posição é favorável aos militares.
Identifica-se diversas questões de repercussão constitucional que precisam ser repensadas no âmbito do Legislativo, com reforma do Decreto de regulamentação; executivo através de uma administração mais humana e no Judiciário com avaliação do caso concreto de forma aprofundada e não em uma lógica mecanizada de aplicação normativa.
Em pedidos de transferência por motivo de saúde, a norma estabelece que medida precisa ser recomendada pela Junta Médica do Hospital da Brigada Militar, cabendo a esta indicar qual região do Estado propiciará o melhor reestabelecimento do servidor ou seu dependente e desde que esta seja a única alternativa de tratamento viável.
Tem-se, aqui, excesso de interferência na vida privada do servidor ou seu familiar que, por força de um Decreto (cujo objetivo é regulamentar e não criar direitos me deveres), decide sobre o melhor (local) de tratamento do servidor o que, ao entender desta, ofende o artigo 5.º, II da Constituição, restringe a autonomia do enfermo sobre a própria vida e saúde a afetar a dignidade da pessoa humana.
Neste caso, existem alguns poucos julgados favoráveis:
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR MILITAR. TRANSFERÊNCIA POR DOENÇA DE DEPENDENTE. PECULIARIDADES DO CASO. CONCESSÃO. Pedido de transferência de Soldado da Brigada Militar com fundamento na necessidade de assistência da familiar, com base no art. 3º, II, do Dec. 36.175/95. Preenchimento dos requisitos necessários à concessão da transferência devidamente demonstrados. Demonstração da grave doença do pai do demandante, bem como das dificuldades do contexto familiar, exigindo a sua proximidade à família. Parecer favorável da chefia imediata a suprir a autorização por Junta Médica administrativa. Honorários advocatícios reduzidos. SENTENÇA MODIFICADA. PARCIAL PROVIMENTO À APELAÇÃO. (Apelação Cível Nº 70030763684, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, Julgado em 28/01/2010)
APELAÇÃO CÍVEL. SERVIDOR PÚBLICO MILITAR. SOLDADO. PEDIDO DE REMOÇÃO POR MOTIVO DE DOENÇA DOS GENITORES. NECESSIDADE DE DOIS ANOS DE SERVIÇO E CONVENIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO NO CASO DE MOVIMENTAÇÃO POR INTERESSE DO SERVIDOR. JUNTA MILITAR DE SAÚDE QUE SE MANIFESTOU FAVORAVELMENTE À TRANSFERÊNCIA REQUERIDA, TENDO EM VISTA QUE A MÃE DO SERVIDOR APRESENTA TRANSTORNO DEPRESSIVO GRAVE (CID F33.2) E SEU PAI SOFRE DE ETILISMO CRÔNICO (CID F 10.2). PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS DO ART. 3º, II, DO DECRETO ESTADUAL Nº 36.175/95. INCONVENIÊNCIA DA ADMINISTRAÇÃO, ADEMAIS, QUE PODERIA IMPEDIR A REMOÇÃO, NOS TERMOS DO ART. 18, INC. III, DO REGULAMENTO CITADO, QUE NEM AO MENOS FOI INVOCADA, NÃO SE PODENDO CONFUNDIR, AINDA, DISCRICIONARIEDADE COM ARBITRARIEDADE. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70020893335, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Luiz Pozza, Julgado em 06/12/2007)
SERVIDOR PÚBLICO. REMOÇÃO DE SERVIDORA MILITAR, PROMOVIDA À GRADUAÇÃO DE 2º Sgt-PM, DA CIDADE EM QUE RESIDIA COM SUA FAMÍLIA ‘ SANTA MARIA ‘ PARA PORTO ALEGRE. DIREITO À VIDA E À SAÚDE. BEM ESTAR DA FAMÍLIA. EXISTÊNCIA DE VAGAS NA CORPORAÇÃO EM SANTA MARIA. ILEGALIDADE. O pedido de remoção de servidora pública estadual militar encontra amparo na legislação vigente (LC-RS nº 10.990/97) e especialmente na Carta Política (arts. 5º, caput, 226 e 227). Princípios da vida e da saúde humanas, principalmente por se tratar de filhas menores, que devem ser privilegiados em detrimento do interesse da Administração Pública, que, aliás, não se encontra fortemente violado em virtude de existirem vagas para 2º Sgt-PM na cidade de Santa Maria. Ilegalidade do ato que obstou a remoção da servidora comprovada. Sentença de procedência mantida. APELAÇÃO IMPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70014685614, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nelson Antônio Monteiro Pacheco, Julgado em 17/05/2007)
O ultraje às normas Constitucionais não se restringe aos pedidos de transferência por motivo de saúde.
Frequentemente os militares formulam requerimento de transferência para coabitarem com esposa e filho (s).
A questionável norma regulamentadora não prevê como fundamento para o pedido a preservação da unidade familiar, de modo que o servidor, costumeiramente, tem indeferido o pleito.
A proteção da família e seu reconhecimento como base da sociedade está insculpida no artigo 226 da Constituição Federal, deste modo, ainda que o Decreto de Movimentação não estabeleça em seu rol a unidade familiar como motivação capaz de fundamentar deferimento de transferência, ao entender técnico desta subscrevente, é possível a utilização do fundamento pela primazia hierárquica do preceito constitucional sobre qualquer outra norma, sobretudo, um Decreto.
O Judiciário não tem um entendimento pacífico sobre o tema. A maioria dos julgados acolhem o pleito dos militares, embora muitos ainda sejam desfavoráveis:
Favorável:
RECURSO INOMINADO. SERVIDOR PÚBLICO. POLICIAL MILITAR. REMOÇÃO PARA ACOMPANHAMENTO DE CÔNJUGE. PRESERVAÇÃO DA UNIDADE FAMILIAR. POSSIBILIDADE. A transferência pleiteada na inicial visa preservar a unidade familiar, que é o bem maior a ser tutelado pelo Poder Judiciário, sobrepondo-se, inclusive, ao interesse público. Por outro lado, inexiste comprovação nos autos acerca de eventual prejuízo ao erário público, bem como no desempenho das funções profissionais, em caso de remoção. Sentença mantida por seus próprios fundamentos, nos termos do art. 46 da Lei nº 9.099/1995. RECURSO INOMINADO DESPROVIDO. UNÂNIME. (Recurso Cível Nº 71005734157, Segunda Turma Recursal da Fazenda Pública, Turmas Recursais, Relator: Rosane Ramos de Oliveira Michels, Julgado em 27/07/2016)
Contra:
RECURSO INOMINADO. SEGUNDA TURMA RECURSAL DA FAZENDA PÚBLICA. SERVIDOR PÚBLICO. BRIGADA MILITAR. REMOÇÃO PARA ACOMPANHMENTO DE CÔNJUGE. DIREITO NÃO EVIDENCIADO. 1.Trata-se de ação em que pretende a Parte Autora transferência da Requerente do 12º BPM/2ª CIA PM de Caxias do Sul e lotação definitiva desta junto ao 2º BPA/2ª CIA/CRPOFO de Itaqui com fundamento na preservação da Unidade Familiar. 2.No caso telado, inexiste previsão legislativa que autorize a remoção da Parte Autora para localidade em que lotado seu esposo, não se amoldando o disposto no artigo 157 da Lei Complementar Estadual 10.990/97 à hipótese fática ostentada pela Demandante. 3.Sentença de procedência que merece reforma. RECURSO INOMINADO PROVIDO, POR MAIORIA. (Recurso Cível Nº 71007492598, Segunda Turma Recursal da Fazenda Pública, Turmas Recursais, Relator: Thais Coutinho de Oliveira, Julgado em 23/05/2018)
Existe, ainda, a possibilidade de transferência para o mesmo local de lotação do cônjuge servidor estadual prevista no artigo 157 da Lei Estadual 10.990/97 (Estatuto dos Servidores Militares da Brigada Militar do RGS) e artigo 3.º, VI do Decreto 36.175/95 se o/a servidor/a for casado/a com outro servidor estadual.
Contudo, quando o cônjuge do militar é servidor municipal ou federal, mais uma vez, a posição majoritária do Judiciário marginaliza o princípio que protege a unidade familiar e decide de forma absolutamente legalista, limitando-se aos fundamentos de primazia do interesse público sobre o particular ou ausência de autorização normativa.
RECURSO INOMINADO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. BRIGADA MILITAR. TRANSFERÊNCIA. ACOMPANHAMENTO DE CÔNJUGE – SERVIDORA PÚBLICA MUNICIPAL. PRESERVAÇÃO DA UNIDADE FAMILIAR. IMPOSSIBILIDADE. Entre o Estatuto dos Servidores da Brigada Militar, o Decreto nº. 36.175/95 regulamenta as movimentações do quadro por interesse do servidor ou por necessidade do serviço. De regra, e inerente ao exercício da função pública a possibilidade de (re)distribuição, ou remanejo, dos servidores, observado, sempre, o desempenho no cargo para o qual prestou concurso e a natureza das suas funções, em conformidade com o interesse público e com a potencialização da eficiência na prestação destes serviços, em atendimento às necessidades da segurança pública, como no caso do autor, policial militar. Com efeito, a remoção do servidor público, civil ou militar, está amparada no poder-dever discricionário da Administração Pública. O interesse privado do servidor não pode se sobrepor ao interesse público de prestação adequada da segurança pública. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS E JURÍDICOS FUNDAMENTOS. RECURSO INOMINADO DESPROVIDO. UNÂNIME. (Recurso Cível Nº 71005106570, Turma Recursal da Fazenda Pública, Turmas Recursais, Relator: Volnei dos Santos Coelho, Julgado em 29/10/2015)
Frente a situação posta, observa-se que o direito à transferência do servidor militar ainda é bastante controvertido e a evolução das decisões, tanto no âmbito administrativo quanto no judicial, ainda são lentas.
É preciso um esforço contínuo dos militares na busca por reforma do Decreto de Movimentação e na elaboração de requerimentos bem fundamentados, sobretudo no texto da Constituição Federal, de modo a trazer reflexões mais profundas àqueles que julgam os pleitos.
Dienefer L. Seitenfus
Advogada- OAB/RS 58.892
Responsável pela área Cível da Rodrigues Silveira Advocacia